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Um dia comum

Por Paulo Pazz


Vovô estava ali, na área, sentado numa cadeira de cordas trançadas, mãos cruzadas no colo, olhos fechados. Gostava de ficar assim, ouvindo vovó atarefando-se de coisa pouca, mas constante. Ora costurando à mão, ora varrendo o chão, ora lavando um copo, uma xícara; e sempre o fazia assoviando ou murmurando uma canção qualquer do seu tempo de juventude.


Meu avô, de vez em quando, soltava uma tossezinha seca, interrompendo o gungunar da sua eterna e amada companheira. Vovó parava a cantoria, chegava na porta e de lá olhava se estava tudo bem com vovô. Depois de conferir, voltava ao nada que estava fazendo. As horas, marcadas num relógio de parede sobre o portal da despensa, não paravam.


" Quase hora do almoço!"


Desce o degrauzinho da porta da cozinha, atravessa a área onde vovô repousa, segue uma trilha curta ladeada por plantinhas várias que eles cultivam com zelo. Funcho, arnica, marcela, alecrim, babosa, boldo e variadas flores rasteiras constituíam aquele pequeno vergel. Ao fundo, uma pequena hortaliça que vovô havia acabado de aguar e limpar das ervas daninhas. Vovô, até hoje, encanta-se com a variação de tons de verde. Alface, couve, mostarda, rúcula e outras folhagens formam um mosaico esverdeado, salpicado pela vermelhidão de alguns pés de tomate, por trás da cerca de tela.


No canto daquele cercado, uma área coberta com telhas utilizadas da troca do telhado da casa. Ali, são guardados esterco ensacado, algumas sementes, o milho e a ração  para as poucas galinhas, além de ser guarida para as ferramentas bem organizadas. Ao lado da cobertura, dois baciões de alumínio um para salsa e outro para cebolinhas foram estrategicamente colocados ali, para ficarem protegidos do sol da tarde.


Vovó passa pelo portãozinho de madeira, colhe um pouco de cheiro verde, arranca um pé de alface, vai até o muro que separa o seu quintal com o do vizinho e retira alguns quiabos novinhos dos pés plantados em covas ao longo do paredão. Vovô gosta muito de quiabo, mas tem de ser ferventado inteiro em água com sal.


Ao voltar, vovó olha para seu amado esposo dormitando na sua cadeira preferida.


" Como eu gosto desse homem, meu Deus! Agradeço todos os dias ao Senhor pelo companheiro que me deu!"


Coloca o avental que ela mesma fizera, deita o pano de prato sobre o ombro e começa a lidar com o fogão. Dá gosto de ver a limpeza de tudo. As vasilhas brilham tanto, os móveis todos forrados metodicamente, tudo tão colorido, tão..., tão..., tão casa de vó.


Preparado o almoço, chama por vovô. Ele espicha-se todo, espreguiça-se e vai rumo à cozinha, antes que sua velha fique zangada. Pensando isso, dá uma risadinha marota e silenciosa, assenta-se e pega a mão de vovó. Ambos fecham os olhos em oração de agradecimento ao Pai que tudo lhes deu e ainda dá.


Após o almoço, vovô retira as coisas de cima da mesa e lava as vasilhas conforme os anos de convivência ensinaram-no a fazer do jeito que agrade à vovó, enquanto ela limpa o fogão e, depois, varre o chão.


Tudo terminado, vovô liga a TV e assenta-se no canto do sofá maior. Vovó achega-se e deita-se no comprido que resta do móvel, recolhe as pernas e coloca a cabeça no colo de vovô. Vovô acaricia sua face e pousa sua mão calosa sobre a cabeleira já quase totalmente branca dela. Sentindo aquela carícia dos dedos de seu amado de sempre, vovó adormece sorrindo. Em pouco tempo, os dedos de vovô vão imobilizando-se gradualmente, até que ele também adormece pacificado.


... A TV, com o volume baixíssimo, continua na sua tarefa inútil de conversar com as paredes.





 

Autoria


Paulo Pazz é licenciado em Letras pela UFG-CAC, Professor pelo Estado de Goiás e Membro da ACL - Academia Catalana de Letras. Também é revisor e colunista da Revista Portalvip (com circulação em toda região sudeste de Goiás), integrante da Comissão julgadora das Olimpíadas da Língua Portuguesa desde 2014, ator integrante da Cia Express’arte e instrutor de “Contação de Causos" pelo Centro Cultural Labibe Faiad (Catalão/GO). Participou da mesa redonda O fazer Poético e do Sarau de Poesias (ambos do I FLICAT UFG) e do Festival Literário do Cerrado – FLICA (Ipameri-GO), edições I, III e IV. Mantém a Página literária do blog Recanto das Letras, do site da UOL, desde Outubro de 2008. Recebeu oito premiações em concursos literários mantidos pela UFG (a primeira em 1993), cinco premiações pelo SESI-Arte e Criatividade (nas categorias Conto e Poesia) e o Prêmio “Trabalhador da Indústria” pelo SESI. Participou de duas antologias poéticas publicadas pelo SESI – Serviço Social da Indústria e publicou os livros "Palavra Lavrada", "Transfiguração" e "Manual do Desesquecimento".

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