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O grito

Por Paulo Pazz



O grito longo, agudo e desesperado veio lá da direção do córrego Catingueiro, que cortava a propriedade de fora a fora, e rasgou a noite, até bater nos ouvidos do “seu” Orcalino. Em seguida, uma lufada de vento balançou com força os galhos das árvores ao redor da casa da fazenda.


A lamparina ficava sobre uma mesinha no canto do quarto, entre um oratório com a imagem da Virgem Imaculada e uma jarra com folhas e flores de laranjeira, para refrescar o ar. “Seu” Orcalino acendeu a lamparina e iluminou os olhos assustados de “dona” Ana. Deu um sorriso leve, como a dizê-la que estava tudo bem, e saiu do quarto, passando pelos cômodos do casarão imenso da fazenda: herança antiga e muito judiada pelo tempo. Seus passos ecoavam sobre as tábuas rangentes do assoalho, indicando o trajeto que fazia. No primeiro quarto, suas três filhas, Yolanda, Ioly e a pequena Irani, adormeciam a sono solto. No outro quarto, Miguel dormia sozinho. O pai abriu a porta do quarto, estendendo a lamparina acima da cabeça, fazendo com que a luz amarela invadisse o quarto. A cama estava revirada e ele não viu Miguel.


Entrou no quarto a passos largos, olhou por todo lado e nada do menino. Sussurrou seu nome uma, duas vezes e viu Miguel saindo de sob a cama, trêmulo, olhos arregalados de medo. Ele ouvira o barulho também!


O pai ajudou-o a sair de onde estava e sentou-se ao seu lado na cama. Colocou suas mãozinhas frias entre as suas e ambos rezaram baixinho, até que o sono pesasse nos olhos de Miguel. “Seu” Orcalino deitou o menino, cobriu-o e saiu do quarto, dando-lhe um beijo na testa.


O homem ainda conferiu cada uma das janelas imensas e as portas da sala e da cozinha, voltou para seu quarto e encontrou a esposa deitada, mais aliviada ao perceber que estavam todos bem.


“Seu” Orcalino não pregou o olho pelo resto da madrugada.


Pouco depois das cinco, quando o sol já ameaçava sair por detrás da mata, o cheiro bom de café fresco recendi pelo pasto afora e “seu” Orcalino já atravessava o pátio dos fundos da casa com um pequeno jacá de milho nas costas, indo em direção ao cocho do mangueiro, onde os porcos gritavam de satisfação, antevendo o tira-jejum que o homem trazia.


O dia transcorreu normalmente, entre os afazeres cansativos de sempre da fazenda. Ao final do dia, o cansaço evidente arriara os ombros do homem; ainda mais pela noite mal dormida.


Antes de se deitar, “seu” Orcalino preparou o lampião e a espingarda cartucheira, para não ser pego de surpresa, como na noite anterior.


Passava um pouco das duas da madrugada, quando o rangido varou o pretume da noite, seguido de uma ventania forte. “Seu” Orcalino levantou-se de sopetão, passou a mão no lampião, destravou a espingarda e correu em direção ao ruído.


Dona Ana, apreensiva, debulhava o terço, ajoelhada em frente ao oratório. Logo, voltou o rosto em direção à porta do quarto que se abria lentamente, rangendo as dobradiças. Ela fechou os olhos e só os abriu quando ouviu a risada do esposo.


Ana, bem que ocê quiria que eu cortasse a moita de bambu! Num é que a ventania isfrega um bambu no ôto, fazeno aquele pampêro de madrugada? Disse o homem, entre risos, enquanto pendurava a espingarda acima da soleira da porta do quarto.


No outro dia, a hortinha recebia cerca nova...



Floresta de bambu



 

Autoria



Paulo Pazz é licenciado em Letras pela UFG-CAC, Professor pelo Estado de Goiás e Membro da ACL - Academia Catalana de Letras. Também é revisor e colunista da Revista Portalvip (com circulação em toda região sudeste de Goiás), integrante da Comissão julgadora das Olimpíadas da Língua Portuguesa desde 2014, ator integrante da Cia Express’arte e instrutor de “Contação de Causos" pelo Centro Cultural Labibe Faiad (Catalão/GO). Participou da mesa redonda O fazer Poético e do Sarau de Poesias (ambos do I FLICAT UFG) e do Festival Literário do Cerrado – FLICA (Ipameri-GO), edições I, III e IV. Mantém a Página literária do blog Recanto das Letras, do site da UOL, desde Outubro de 2008. Recebeu oito premiações em concursos literários mantidos pela UFG (a primeira em 1993), cinco premiações pelo SESI-Arte e Criatividade (nas categorias Conto e Poesia) e o Prêmio “Trabalhador da Indústria” pelo SESI. Participou de duas antologias poéticas publicadas pelo SESI – Serviço Social da Indústria e publicou os livros "Palavra Lavrada", "Transfiguração" e "Manual do Desesquecimento".





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