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Continença

Por Paulo Pazz



Nascera Lindária, mas, aos poucos seu nome fora sendo esquecido e substituído por um apelido proveniente de seu defeito físico que se agravou à medida que crescia.


Lindária tinha a perna esquerda mais curta e mais frágil. Para caminhar, apoiava a mão esquerda no joelho e, para manter o equilíbrio, jogava o tronco para frente e erguia a mão direita até a altura da testa. Por isso, todos da pequena cidade de Três Ranchos apelidaram-na de Continência; que depois passou a ser “Continença”.


Continença era aquele tipo de pessoa que parece ter nascido para o sofrimento. As acontecências vinham de lastro: Logo que nasceu, a mãe caiu na cama e só saiu dentro de um caixão. A única irmã, Liberina, ganhou barriga e estrada, para nunca mais dar notícias. O pai deixou-a para a vida cuidar desde menina e vivia de fazenda em fazenda da região, trabalhando malemale quando a cachaça acabava.


Assim, cresceu sozinha, às custas dos favores da gente do lugar!


Continença, sem estudo, sem oportunidade e cansada de viver dos favores alheios, foi quebrar coco e extrair azeite do fruto serviço que todas as mulheres do lugar mais faziam. Assim, não precisava de muita ferramenta e nem de se deslocar tanto. Um caldeirão grande, uma trempe, lenha, um pedaço de pau resistente e um machado. Continença trabalhava por produção para Seu Dito. Seu Dito trazia os cocos de Monte Carmelo para Três Ranchos e Continença fazia o serviço de extração de óleo e feitio de carvão com as cascas. Ainda tinha umas poucas galinhas que faziam a festa ciscando em volta de Continença, catando migalhas gostosas no meio daquele mundo de cascas.


Com o machado de corte para cima e um porrete nas mãos, Continença, às cinco e meia da manhã, já se sentava no chão e ficava até por volta do meio-dia quebrando os cocos trazidos na véspera.


Continença dizia:


O porrete é meu lápis e o machado meu caderno, onde escrevo toda minha história!


Com um pouco de cascas de coco e lenha, ela acendia a trempe feita de três pedras robustas, colocava o caldeirão e, por quarenta minutos mais ou menos, lidava com a torração das castanhas. Depois de torradas, Continença arrastava o caldeirão ainda fumegando para perto do pilão, com a ajuda de dois ganchos compridos de ferro.


Sentada na ponta alongada do pilão, Continença avaliava a vida e pilava as castanhas até virar uma pasta viscosa que devolvia à panela para cozimento. Ia colocando água aos pouco e sovando com um pedaço de ripa, até que aquilo virava um caldo, depositando a parte sólida que se transformava em uma borra marrom, no fundo do caldeirão; sinal de que a água havia secado. Depois de esfriar, tirava aquele óleo amarelo, engarrafava e guardava numa prateleira, dentro do rancho.


Era assim que Continença passava dias, meses e anos!


Era assim que Continença prestava continência para a vida que, ainda que de mal com ele, permitia que crescesse em honra e honestidade. Até que veio a barragem e alagou tudo, destruindo os babaçus e matando o principal sustento de Continença.


Um dia, encontraram Lindária sem vida na beira do lago.




 

Autoria



Paulo Pazz é licenciado em Letras pela UFG-CAC, Professor pelo Estado de Goiás e Membro da ACL - Academia Catalana de Letras. Também é revisor e colunista da Revista Portalvip (com circulação em toda região sudeste de Goiás), integrante da Comissão julgadora das Olimpíadas da Língua Portuguesa desde 2014, ator integrante da Cia Express’arte e instrutor de “Contação de Causos" pelo Centro Cultural Labibe Faiad (Catalão/GO). Participou da mesa redonda O fazer Poético e do Sarau de Poesias (ambos do I FLICAT UFG) e do Festival Literário do Cerrado – FLICA (Ipameri-GO), edições I, III e IV. Mantém a Página literária do blog Recanto das Letras, do site da UOL, desde Outubro de 2008. Recebeu oito premiações em concursos literários mantidos pela UFG (a primeira em 1993), cinco premiações pelo SESI-Arte e Criatividade (nas categorias Conto e Poesia) e o Prêmio “Trabalhador da Indústria” pelo SESI. Participou de duas antologias poéticas publicadas pelo SESI – Serviço Social da Indústria e publicou os livros "Palavra Lavrada", "Transfiguração" e "Manual do Desesquecimento".

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