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Ante uma estrela cadente

Por Paulo Pazz



Vovó Nenê jogou uns panos pretos por cima de todos os espelhos que haviam na casa, assim que chegara do velório do vô Salustiano. Segundo a crendice, deve-se tampar espelhos para que a alma de quem faleceu siga em paz.


Não eram muitos espelhos. Apenas um no toucador que ela mantinha no quarto para guardar algumas quinquilharias próprias de todas as avós, como um rosário, alguns santinhos, a bíblia, uma água de cheiro, uma escova para ela pentear os sedosos cabelos branquinhos e outra para seu velho, que já nem tinha tanto cabelo com que se preocupar, uma navalha para vovô aparar o bigode, um catecismo e uma caixinha redonda onde guardava poucas bijuterias que sua mínima vaidade exigia.


Vovó suspira, misto de cansaço e tristeza, senta-se na beirada da cama, tira os sapatos, pisando no carpete macio, coloca o rosto entre as mãos e soluça baixinho, quase em sussurro. Respeitando seu silêncio, mamãe senta-se ao lado dela e, muda, desliza seus dedos entre os cabelos da velhinha recém descoberta viúva e só. Logo, mamãe sai, não sem antes dirigir à minha avozinha um olhar demorado e zeloso.


Foram anos e anos de convivência interrompida no silêncio da madrugada anterior. Vovô simplesmente dormira. Não antecipara nenhuma despedida, pois estava plenamente sadio.


Simplesmente dormira!


Vovó dá um suspiro demorado, alisa o lençol da cama, como se acarinhasse seu esposo pela última vez, como se lembrando da primeira vez que o tocara. Uma lágrima furtiva desce, lenta, lenta, pelos sulcos de sua pele tão demarcada pelas lidas de todos os anos.


Levanta-se e passa por aquelas pessoas que estavam caladas, espalhadas pela sala ampla. Seus passinhos miúdos levam-na para o quintal colorido pelas flores que seu velho cultivava com esmero e paciência. À sombra de uma quaresmeira, senta-se por alguns momentos, depois deita-se, abre os braços em cruz e sente o bafo quente de verão deslizar sobre o seu corpo.


Não dizia nada. Nem mais chorava. Só fechou os olhos e respirava compassadamente, calma, silenciosa, bebendo da saudade que já lhe acossava.



“Salustiano, o professor Salustiano, que poetizava sobre um tudo: sobre a vida, sobre o povo, sobre si e sobre ELA.


Salustiano tinha o veneno doce das palavras encantadoras e a magia da voz desenhando rimas que me queimam por dentro, confessando a mim que eu era ELA (sempre ELA), seu melhor jargão, seu único mote.


A primeira vez que seus olhos pousaram sobre os meus, imediatamente soubemos que nossos laços se entrelaçariam para sempre. Muito mais que dependência, tínhamos cumplicidade. Soubemos, ali, que seguiríamos no mesmo compasso, na mesma canção, no mesmo brado, no mesmo sussurro, no mesmo respirar. Nos tornamos vasos que acolheriam, para sempre, a alma um do outro.


Tudo era nada sem a conivência e a presença de ambos. Unha e carne; amanheceres e anoiteceres; alma e pele; trapiche e cais; letra e canção...


E assim se deu até ontem, Meu Deus... Meu Deus!”



Mamãe se achega, deita-se ao lado de vovó. Eu me deito ao lado de mamãe e ficamos ali, os três, até a noite cair de vez.


No céu, uma estrela cadente desenha um arco de luz até sumir de nossas vistas.


Abraçamo-nos e sorrimos por dentro, aninhados neste aconchego tépido denominado FAMÍLIA: Eu, mamãe e ELA (sempre ELA)!




 

Autoria



Paulo Pazz é licenciado em Letras pela UFG-CAC, Professor pelo Estado de Goiás e Membro da ACL - Academia Catalana de Letras. Também é revisor e colunista da Revista Portalvip (com circulação em toda região sudeste de Goiás), integrante da Comissão julgadora das Olimpíadas da Língua Portuguesa desde 2014, ator integrante da Cia Express’arte e instrutor de “Contação de Causos" pelo Centro Cultural Labibe Faiad (Catalão/GO). Participou da mesa redonda O fazer Poético e do Sarau de Poesias (ambos do I FLICAT UFG) e do Festival Literário do Cerrado – FLICA (Ipameri-GO), edições I, III e IV. Mantém a Página literária do blog Recanto das Letras, do site da UOL, desde Outubro de 2008. Recebeu oito premiações em concursos literários mantidos pela UFG (a primeira em 1993), cinco premiações pelo SESI-Arte e Criatividade (nas categorias Conto e Poesia) e o Prêmio “Trabalhador da Indústria” pelo SESI. Participou de duas antologias poéticas publicadas pelo SESI – Serviço Social da Indústria e publicou os livros "Palavra Lavrada", "Transfiguração" e "Manual do Desesquecimento".


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