Por Fabiana Esteves
Nunca se cozinhou tanto nesta quarentena, né? Até quem não se aventurava acho que está aprendendo…
Sempre achei fascinante esse conhecimento culinário passado de pais para filhos… Minha avó tinha um livro muito antigo, As receitas de Dona Benta, que ela e minha mãe consultavam o tempo todo. Muito antigo, as páginas já estavam quase cor-de-terra, um amarelo bem forte, ocre. Mais grosso do que a Bíblia, tinha todo tipo de receita, desde o trivial até os pratos de festa. Cheguei a comprar uma nova edição do tal livro. Mas não achei a menor graça. Limpo demais, novo demais, deixava a desejar no quesito história. Na minha memória afetiva o antigo era só encanto.
Mas além dele, cada uma mantinha um caderno, cheio de recortes que elas iam juntando, de revistas, de embalagens de produtos. Rótulo de leite moça e fermento sempre trazem receitas. O caderno da minha mãe era forrado de tecido quadriculado em preto e branco com um coelho cozinheiro bordado na capa. Castigados de tanto uso, tanto os cadernos quanto o livro.
Hoje em dia os livros de receitas até são publicados mas a gente quase não usa. Para quê? Temos a internet, o YouTube e o programa da Ana Maria Braga... Dá até para reclamar com quem postou a receita se não der certo. Mesmo assim, ainda tenho livros, em especial um que ganhei quando casei que se gabava de só ter receita difícil. Eu gostava de me desafiar nas muitas camadas de um doce, e ouvir os elogios dos amigos depois. A minha sobremesa era sempre a primeira a ter a travessa esvaziada. A mais bonita, a mais gostosa, a mais difícil de fazer.
O tal livro é mesmo garboso, de capa dura, páginas brilhosas e fotos de um primor inigualável. Quando as meninas eram bebês o meu marido as colocava no colo e ia mostrando o livro, sob os pequenos olhinhos maravilhados… Ele dizia que era para já irem aprendendo e não fugirem aos dotes de família. Ele também gosta muito de cozinhar. Dividimos bem esta parte. Ele faz o feijão, as carnes e a farofa; e eu os legumes e o arroz. Ele faz bolo e pudim, eu brigadeiro e pavê. Entrelaçamos as histórias, ambas observando as nossas mães e avós.
As meninas ainda não cozinham, sou apavorada demais para deixar que mexam com o fogo, mas gostam de ajudar. Incrível como nossas lembranças de infância estão sempre carregadas de cores, cheiros e sabores.
Lembro sempre da Cora Coralina adoçando seus quitutes com muitas xícaras de poesia. Vi que lançaram um livro com as receitas dela e até pensei em reunir as da minha família. Acredito que minha mãe ainda tenha os cadernos. Mas será que alguém ainda compra livros de receitas? E se compra, será que abre para consultar? Para mim são objeto de desejo, como um sapato lindo, vermelho e altíssimo, que nunca vou calçar… Pura contemplação.
Nas fotos acima, Ísis e Laís, filhas de Fabiana Esteves, fazendo suas receitas em família.
Autoria
Fabiana Esteves é Pedagoga formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNiRIO) e Especialista em Administração Escolar. Trabalhou como professora alfabetizadora na Prefeitura do Rio de Janeiro e no Estado do Rio com Educação de Jovens e Adultos. Trabalhou como assessora pedagógica e formadora nos cursos FAP (Formação em alfabetização Plena) e ALFALETRAR, ambos promovidos pela Secretaria de Educação do mesmo município. Também foi Orientadora de Estudos do Pacto pela Alfabetização na Idade Certa, programa de formação em parceria do município com o MEC. Em 2015 coordenou a Divisão de Leitura da SME de Duque de Caxias (RJ). Atualmente, é Orientadora Pedagógica da Prefeitura de Duque de Caxias, onde tem se dedicado à formação docente. Escritora e poeta, participou de concursos de poesia promovidos pelo SESC (1º lugar em 1995 e 3º lugar em 1999) e teve seus textos publicados em diversas antologias pela Editora Litteris. Escreve para os blogs “Mami em dose dupla” e “Proseteando”. Publicou os livros “In-verso”, "Pó de Saudade", "Maiúscula" e "A Encantadora de Barcos". É mãe das gêmeas Laís e Ísis.
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