O dia era ainda mal amanhecido, quando eu acordara com o vozerio pretensamente baixo de meu pai que falava com outra pessoa.
Tonto de sono, abri a porta carcomida do quarto e desci o degrau que dava para outro quarto menor e dali para uma antessala que chamávamos de varanda. Até hoje não entendo por que era assim chamada.
No claro-escuro da manhã que adivinhava chuva, pude divisar o vulto de meu pai sentado no rabo do fogão, pernas cruzadas, mãos presas entre as coxas agasalhadas por uma calça “de serviço” grossa e surrada. Sentado em outro tamborete manquitolante, pude ver um homem baixo, feio, truculento e calvo que, apesar da fisionomia meio que levada ao exagero de feiura, era doce e passivo, quando presente ali naquela nossa casa humilde.
A amizade que se alinhavava entre aqueles dois era notada em toda a cidadezinha espalhada ao longo do Ribeirão Pirapitinga. Meu pai era um dos poucos homens de honra que via a alma daquele homem debochado por todos e todas. Era uma amizade diferente e engraçada, que unia um homem e um bobo feio, conforme se cochichava por ali.
Meu pai era conhecido por todos como um homem bom, trabalhador, sempre sorridente e capaz de tratar aquele homem grosseiro com o mesmo respeito que tratava o prefeito ou qualquer outra pessoa “normal” da região.
Do bobo, os moradores mais antigos conheciam somente a superficialidade da história de vida. Sabiam que nascera por ali, que crescera num único cômodo, junto com sua mãe que vivia de lavação de roupas para várias famílias do bairro. Seu casebre situava-se na “rua de baixo”, de onde, nem bem saía, servia de alvo para a molecada que o rodeavam gritando “Molafaca, Molafaca, Molafaca”.
Até hoje não consegui descobrir o porquê desse apelido. Só sei que ele ficava fulo da vida e corria com seus passinhos miúdos, dando saltos repicados, batendo com o próprio punho na orelha direita e respondendo com xingamentos e fungados que tornavam sua carranca ainda mais feia. Os moleques adoravam vê-lo reagir assim, até que um adulto, por dó, debandava aquela corja pelos trieiros que ligavam as poucas e mal cuidadas ruas de terra batida.
Bem, ali estavam os dois naquela cozinha de paredes impregnadas de fuligem do fogão a lenha. Às vezes ficavam calados por longos minutos, apenas ouvindo o programa do Zé Bétio, na Rádio Capital, perdidos em meio ao crepitar das labaredas do fogão, onde a água borbulhante já pedia o pó preto do café pilado.
Meu pai se levantava do rabo do fogão, arrastava a caçarola para a beira do crivo e jogava uma, duas três colheradas generosas de café na água fumegante. Com gestos precisos e metódicos como sempre fora sua vida, ele se perdia na faina de escaldar aquela beberagem de cheiro tão agradável.
Duas xícaras esmaltadas eram enchidas e meu pai passava uma para o Bastião e retinha a outra entre seus dedos grossos e trabalhadores.
O que mais me impressionava era que o Bastião não assoprava aquele caldo fervente que mal saíra do fogo. Tudo nele era realmente grosseiro, até seus beiços grandes e sua bocarra desdentada que sorvia o café com grata satisfação. Então, desatava a falar de tudo e nada, como se o café destramelasse sua voz em atropelos. Ninguém nem nada escapava de sua sanha. Falava e falava, sem que dissesse algo coerente.
Eu, aninhado entre as pernas de meu pai, bebia devagar um pouco do café também e absorvia o bucolismo daquela cena de minha infância que hoje povoa minhas memórias, enquanto ouvia os queixumes do Bastião Molafaca. Admirava-me sobremaneira de sua memória paquidérmica. Desfiando um rosário interminável de nomes (árvores genealógicas quase completas), costurando causos e histórias (estórias?) totalmente desconexos para mim.
Meu pai, por fim, lembra-me da hora de me arrumar e ir para a escola. Eu já vestira a calça bege, com uma lista branca lateral ao longo de cada uma de suas pernas. Mas a preguiça juvenil, aliada àquela curiosidade quase diária do Bastião Molafaca no amanhecer de nossos dias, fazia-me rodear, perambular pela cozinha, em um “preciso ir querendo ficar”.
Assim foi sendo ladrilhado o piso da minha infância: meu pai, minha mãe, meus seis irmãos e o Bastião constituindo-se partes integrantes no debulhar do meu cotidiano, meio quê de simples e muito quê de mágico, presunçosamente eterno.
Hoje, na eternidade perigosamente encolhida, rebusco na memória meus bons fantasmas da infância que, entre um soluço e outro, atiçam meu borralho de saudade.
Autoria
Paulo Pazz é licenciado em Letras pela UFG-CAC, Professor pelo Estado de Goiás e Membro da ACL - Academia Catalana de Letras. Também é revisor e colunista da Revista Portalvip (com circulação em toda região sudeste de Goiás), integrante da Comissão julgadora das Olimpíadas da Língua Portuguesa desde 2014, ator integrante da Cia Express’arte e instrutor de “Contação de Causos" pelo Centro Cultural Labibe Faiad (Catalão/GO). Participou da mesa redonda O fazer Poético e do Sarau de Poesias (ambos do I FLICAT UFG) e do Festival Literário do Cerrado – FLICA (Ipameri-GO), edições I, III e IV. Mantém a Página literária do blog Recanto das Letras, do site da UOL, desde Outubro de 2008. Recebeu oito premiações em concursos literários mantidos pela UFG (a primeira em 1993), cinco premiações pelo SESI-Arte e Criatividade (nas categorias Conto e Poesia) e o Prêmio “Trabalhador da Indústria” pelo SESI. Participou de duas antologias poéticas publicadas pelo SESI – Serviço Social da Indústria e publicou os livros "Palavra Lavrada", "Transfiguração" e "Manual do Desesquecimento".
Fanpage: https://www.facebook.com/paulopazz
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