Por Fabiana Esteves
Já faz alguns anos, eu trabalhava numa escola muito grande. E na soleira da porta o professor chegou e me disse: "Você pode conversar com uma aluna minha? Ela está tão triste…" O orientador assume às vezes esta função de escuta, para a qual eu sempre achei que não tinha a menor vocação, mas ao escritor é parte do ofício, é um caminho incrível para a descoberta do outro.
A menina, linda, negra, devia ter uns dez ou onze anos. Tinha realmente um olhar abatido. Eu perguntei o que havia e ela me contou sua história. Disse que era adotada e que a mãe não a amava.
Fiquei pensando que ela poderia ter descido para conversar em outro dia e se encontrar com outra orientadora que não fosse eu. Mas foi providencial, logo eu que tenho quatro irmãos vindos da adoção. Perguntei a ela por que ela achava que a mãe não a amava. "Ah, tia, ela nunca me abraça, nunca me beija e nunca diz que me ama…" O pai era mais carinhoso, então ela comparava. Difícil. Ficamos em silêncio até que eu lhe perguntei: "Quem lava e passa seu uniforme?" "Quem faz a sua comida?" "Quem penteia seu cabelo?" "Quem te leva para escola?" "Quem arruma seu material escolar?" "Quem cuida de você quando está doente?" É evidente que todas as perguntas tiveram uma única resposta: a mãe. No mesmo momento me veio à mente o poema da Adélia Prado.
"Minha mãe achava estudo
A coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de nós de noite o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor
Essa palavra de luxo."
Eu não me lembro se recitei o poema para ela, mas a pergunta saiu: "Você acha que isso tudo que ela faz por você não é sinal de amor?" Ela me olhou ressabiada. Segui explicando que as pessoas têm jeitos diferentes de demonstrar amor. E que o jeito da mãe era assim, cuidando. Enquanto eu ia falando o semblante foi mudando. Parei quando encontrei o sorriso que ganhou o rosto dela. Ela foi embora contente que só ela, dava gosto de ver.
Em outros momentos nos encontrávamos nos corredores e ela sempre me dizia com o olhar e o sorriso que estava tudo bem agora. Amar se aprende amando, já dizia Drummond, mas também se aprende na escola.
Na Imagem acima: Na primeira foto, capa do livro "Poesia Reunida", de Adélia Prado. Na segunda foto, a poesia "Ensinamento", do livro "Poesia Reunida", de Adélia Prado. Na terceira foto, Fabiana Esteves e a equipe da escola onde aconteceu o fato narrado no texto.
Autoria
Fabiana Esteves é Pedagoga formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNiRIO) e Especialista em Administração Escolar. Trabalhou como professora alfabetizadora na Prefeitura do Rio de Janeiro e no Estado do Rio com Educação de Jovens e Adultos. Trabalhou como assessora pedagógica e formadora nos cursos FAP (Formação em alfabetização Plena) e ALFALETRAR, ambos promovidos pela Secretaria de Educação do mesmo município. Também foi Orientadora de Estudos do Pacto pela Alfabetização na Idade Certa, programa de formação em parceria do município com o MEC. Em 2015 coordenou a Divisão de Leitura da SME de Duque de Caxias (RJ). Atualmente, é Orientadora Pedagógica da Prefeitura de Duque de Caxias, onde tem se dedicado à formação docente. Escritora e poeta, participou de concursos de poesia promovidos pelo SESC (1º lugar em 1995 e 3º lugar em 1999) e teve seus textos publicados em diversas antologias pela Editora Litteris. Escreve para os blogs “Mami em dose dupla” e “Proseteando”. Publicou os livros “In-verso”, "Pó de Saudade", "Maiúscula" e "A Encantadora de Barcos". É mãe das gêmeas Laís e Ísis.
Comments